sexta-feira, 6 de maio de 2011

O Compadre Brandão

É com saudade que divido esta carta com vocês. Escrita por meu estimado bisavô na época desta revolta urbana sem precedentes, este documento relata a ânsia da Nação Brasileira em ser dona do próprio destino, para assim torná-lo um tanto menos miserável que a podridão daquele século. Ainda vigente, sua opinião está em perfeita consonância com a minha, a de uma garota curiosa de outra época, época esta que possui novos tempos e velhas problemáticas, velhos abusos, velhas elucidações. Que os senhores possam lê-la com carinho e deixar que as sábias palavras de meu ancestral toquem os seus corações.


Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1904

Caro Fernandes,

   O governo nos abandonou de vez. É certo que no último mês o sanitarista alardeou intenção boa, mas é inaceitável o horror que nos assola desde que esta terra ganhou um dono. Nunca houve um momento em que nossa pátria teve o devido manejo; não escolheu seu nome, não pintou sua bandeira, não planejou seu destino. Fica apenas à amarga deriva dos governantes vorazes que insistem em surgir.
   Primeiro os portugueses, sugando de nossas veias nosso ouro, nossa madeira, nossa gente, nossa riqueza. Estes se delongaram por ainda mais dois Impérios, e, quando os julgávamos finalmente expulsos, acomete-nos a ascensão de militares de pulso de ferro, um em seguida do outro! Vem Deodoro e seu surto ditatorial, assume ilegalmente Floriano, o Consolidador da República com que sempre sonhamos em nossos mais íntimos devaneios, distribuindo ataques à expressão do povo, calado diante dos fuzis.
   Mas os militares se retiram da presidência dando lugar aos civis. E somente a eles. Civis! Pois a civilização, segundo olhares desses oligárquicos que se alternam na deplorável ciranda do café e do leite, se resume aos centros distantes de Paris, Londres, Washington. Se constitui por homens de bigode e pança cheia, mulheres de saias inglesas e livros naturalistas, lavouras de arbustos tropicais e colheitas infladas, e tudo isso nas costas do povo, este composto por nós e por todos os desprezados, todos os companheiros de luta, de pele escurecida ou esbranquiçada que sob o mesmo sol tanto sofrem.
   E somos nós, estes entes selvagens e inferiores, que devemos dar lugar às avenidas alargadas, às luas elétricas, às conduções sobre trilhos, ao avanço tecnológico, ao futuro, à beleza! Somos nós, a legião brasileira, fonte da força e da sustentação, homens e mulheres empilhados sobre cortiços e casebres sem dono, os despojados em favelas, os derrotados sob o pretexto da inexistência de documentos! Nós constituímos ameaça ao delicado ensejo paulista de embelezamento da capital, nós devemos ser excomungados de nossa cidade que “civiliza-se”!
   E esse absurdo toma proporções inimagináveis, meu amigo, inimagináveis. Isso é a plena manifestação da podridão que consome a instituição dita pública. Isso são os planos de desenvolvimento, de industrialização, de investimento, de progresso, sob a cruel visão positivista, sob a instaurada ditadura do coronel, sob a perspectiva dos barões eleitos pelo analfabetismo!
   Fernandes, a resignação não mais nos é alternativa: É imprescindível agir. Minhas entranhas se encolhem mediante tamanho abandono, tamanha miséria, tamanho descaso. Ontem foram os índios, os sertanejos, os conjurados que figuraram nas miras da guarda nacional, e hoje somos nós, os cariocas menos privilegiados, os alvos do poder legislativo; quem nos garante que não o seremos das forças armadas?
   E, igualmente, quem nos assegura que é mesmo uma substância benéfica, essa que os agentes sanitários nos ofereceram? Não lhe parece motivo de suspeita que, mediante nossas recusas em abrir as portas – agora tábuas de madeira erguidas pelo Bota Abaixo -, levantar as saias e despir o braço, o sanitarista possa se valer da medida obrigatória que tramita no Congresso para perpetuar as internações, vacinações? Não lhe parece coerente que os perversos governadores, em suas políticas maquiavélicas, tenham se feito valer de tão poderoso instrumento legal para erradicar de vez não só a selvageria endêmica dos microrganismos como a do povo que polui a santíssima imagem da capital?
   Nunca poderemos nos certificar sobre as respostas, Fernandes. Jamais. Nem desenvolveremos condições de nos informarmos da realidade de Canudos, que remanesce em boatos, lorotas, indícios. O governo nos esconde tudo, nos revela apenas sua imaginação bastante útil em inventar versões e justificativas, em adotar ideologias distantes e planos irracionais. Nunca soubemos da verdade, e dela nunca teremos notícia. Somos apenas massa, massa manobrada por esses poderosos de sorriso amarelado, que se comprazem em perpetuar o coronelismo e enviar seus filhos à distante Europa metropolitana. E é como massa que atuaremos se nos conformarmos com essa realidade hostil, outorgada sobre nosso cotidiano por Rodrigues Alves, Pereira Passos, por todos os seus antecessores e, caso nos retraiamos com medo, por todos os seus sucessores.
   Clame à vizinhança, Fernandes, que esta se una a todas as demais, e que as favelas desçam de seus morros e tomem de volta aquilo que é de seu direito. Insufle no coração recriminado do povo o sentimento de coragem, coragem de reivindicar a cidade que nós construímos durante gerações. Some sua força à de nossa comunidade, composta de opositores, integrantes do povo que tem fome e sede de justiça, de modo que utilizemos essa inaceitável leva de operações como estopim à revolta que modificará, sem precedentes, o destino de nossa nação, pela primeira vez determinado por aqueles que verdadeiramente a constituem.

   Respeitosa e calorosamente,













Referências:
http://scienceblogs.com.br/rainha/2009/06/variola_uma_das_maiores_pandem.php

Um comentário:

  1. Às vezes sinto uma desesperança, quando vejo que desde os tempos mais remotos lutamos por liberdade e ainda assim não a temos por completo. É uma coisa do ser humano, quando o poder lhe sobe à cabeça, ele é rude e cruel; apenas dá importância a seus interesses. A impressão que tenho quando vejo tanta batalha e poucos resultados é que nunca vai mudar. Sempre vai ter alguém no poder impondo suas vontades sem ao menos consultar a população. O seu bisavô tinha razão. O jeito é realmente nos unirmos e lutarmos para tenhamos aquilo que é direito nosso. Não podemos desistir tão cedo. É como diz um velho ditado popular: “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.” Mais cedo ou mais tarde, conseguiremos o que queremos.

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